Monday, May 01, 2006

O Rio da Posse

Que somos todos diferente é um axioma da nossa própria naturalidade. Só nos parecemos de longe, na proporção, portanto, em que não somos nós. A vida é por isso para os indefinidos, isto é, só podem conviver os que nunca se definem , e são, um e outro Ninguéns.
Cada um de nós é dois, e quando duas pessoas se encontram, se aproximam, se ligam, é raro que as quatro possam estar de acordo.
Somos forças porque somos vidas. Cada um de nós tende para si próprio com escala pelos outros. Se temos por nós mesmos o respeito de nos acharmos interessantes, toda a aproximação é um conflito. Só quem não procura é feliz; porque só quem não busca, encontra, visto que quem não procura já tem, e já ter, seja o que for, é ser feliz (como não pensar é a parte melhor de ser rico).
Olha para ti, dentro de mim, noiva suposta, e já nos desaviamos antes de existires. O meu hábito de sonhar claro dá-me uma noção justa da realidade. Quem sonha demais precisa de dar realidade ao sonho. Quem dá realidade ao sonho tem que dar ao sonho o equílibrio da realidade. Quem dá ao sonho o equilibrio da realidade sofre da realidade de sonhar tanto como da realidade da vida (e do irreal do sonho com o de sentir a vida irreal).
Estou-te esperando, em devaneio, no nosso quarto com duas portas, e sonho-te vindo e no meu sonho entras até mim pela porta da direita; se, quando entras pela porta da esquerda, há já uma grande diferença entre ti e o sonho. Toda a tragédia humana está neste pequeno exemplo de como aqueles com quem pensamos nunca são aqueles em que pensamos.
O amor perde identidade na diferença, o que é impossível já na lógica, quanto mais no mundo. O amor quer possuir, quer tornar seu o que tem de ficar de fora para ele saber que nem torna seu e não é ele. Amor é entregar-se. Quanto maior a entrega, maior o amor. Mas a entrega total entrega também a consciência do outro. O amor maior é por isso a Morte, ou o esquecimento, ou a renúncia...
No terraço antigo do palácio, alçado sobre o mar, meditaremos em silêncio a diferença entre nós. Eu era príncipe e tu princesa no terraço à beira mar. O nosso amor nascera do nosso encontro, como a beleza se criou do encontro da lua com as águas.
O amor quer a posse mas não sabe o que é a posse. Se eu não sou meu, como serei teu, ou tu minha? Se não possuo o meu próprio ser, como possuir um ser alheio? Se sou já diferente daquele de quem sou idêntico, como serei idêntico àquele de quem sou diferente?
O amor é um misticismo que quer praticar-se, uma impossibilidade que só é sonhada como devendo ser realizada.
Metafísico. Mas toda a vida é uma metafísica às escuras com rumor de deuses e desconhecimento da rota como unica via.
Bernardo Soares in "Livro do Desassossego"